quarta-feira, novembro 29, 2006

O TREM DE FERRO


O trem de ferro, que menino,
do Rio de Janeiro me levava,
rompia ventos com uma impaciência
que, ao fim da jornada antecipava.

Café-com-pão, piiuuiiiiiiii.
Apenas, eu ia absorto e inteiro.
O maquinista, na curva apitando.
Eu só imaginava, pois, que não existia (não se via)
nenhum maquinista, nem curva.

Havia somente o dia se dissolvendo, ligeiro.
Eu, olhando pela janela,
engolia com o vento,
o momento passageiro.

Não dava contas, na viagem,
dos contornos da serra mineira
(que recupero na lembrança)
disperso que estava,
na sacolejante monotonia da paisagem.

Súbito, como no sonho d’Alice,
o olhar se fixava na casa pobre, de taipa,
que se via no meio da planície verde.

A casa, já entrada no escuro da noite,
pela lenha que ardia no fogão,
mágica, se iluminava.

Tinha um olhar conspícuo (a casa),
um olhar de eternidade,
e vigiava o trem de ferro
em que também viajavam
as minhas conjecturas de criança, inócuas, inócuas.

E o trem, já na lonjura, com a pressa da chegada,
ainda, na curva, apitava.

CARTA MARITIMA

CARTA MARITIMA

Em matéria de amar, querida minha,
tenho, como o Pessoa, o anseio de lançar-me
do porto ao mar tenebroso e iracundo.
Na noite infinita, exilo-me do continente
e lá se vão pedaços partidos de mim,
como cartas em garrafas, aos quatro cantos do mundo.
Viverei por ai, espalhado: O tronco na Ilha de Elba,
as viceras em Maracaibo, a cabeça se estabelecendo
em África, num protetorado. Cambiantes, meus pés
tropicam entre os imbecis da beira-mar.
Hei de viver destino ingente, seguindo alhures a derrota
descrita num livro de bordo, disposta em carta náutica,
medida pelo sextante de um capitão vacilante,
perdida nau, vão quadrante.
Em matéria de amar, querida, sou levado,
pelas vagas que na praia vem quebrar.
Um seixo, concha oca, sem vida,
entre a vazante e a preamar.
Os meus horrores vem sucumbir
em um catre de asceta.
Vez por uma, uma por vez, me projeto no intolerável caos,
em derradeiro anseio de viuvez, frente às mulheres interiores.
Navego, porque é preciso, no dizer naval da precisão,
a resgatar-me das quase tormentas, e no Ártico, da fria monção.
Distingo as entonações do passado, e mais ainda, os ecos-senhores
deste futuro inexeqüível. Como um poeta penitente, esquadrinho
o destinar da viagem para a rota do perder-se.
Busco, celerado, o meu trunfo em ouro e prata,
singrando o espelho esparramado que vai refletir o céu argênteo,
desde acá, de la madre tierra, mas que, então, não nos revela
quantos são os caminhos que haveriam no mar.

NEM UM PIO

O sapo mudo
na noite sem lua:
Findo coaxar!

SOL PELA JANELA


Gato observa
O desdobrar da alma:
Tarde amena!

INTERMINAVEL CATIVEIRO


Corta o espaço e o tempo,
um canto d'África norte,
o lamento, que no Brasil,
se ouve na beira do cais.
Um canto de trabalho, um alento.
Vem de antigos canaviais.
Provêem de um escravo negro,
e este lançou do passado tal alarido,
desde o fundo escuro da senzala,
desde a funda tortura do tronco,
e que inda hoje se faz ouvir na cidade,
com o renovar de seu sentido.
Hoje, cativos tais, milhares são,
com seus corpos nus e chagas em flor.
Esquecidos pelos senhores desta nova escravidão,
estão em abandono, pelas celas das cadeias,
nos bondes/navios negreiros, nas vielas dos morros,
nos guetos, e por aí, vagueiam funâmbulos,
vendendo esfuziantes, sob a proteção
das santas armas de repetição.
Vão compondo o cenário global das guerras,
de grande poder bélico/fálico,
movidas pelo sórdido poder do dinheiro.
Todas as baixas nesta guerra
não serão mais do que negras.
As perdidas crianças negras da urbana selva.
Que são elas todas negras, é uma inegável verdade.
Aqui somos mesmo, mestiços,
para o bem ou para o mal da nossa plena latinidade.
Largados, estes pequenos cristos que matam e morrem,
sem qualquer esperança ou culpa,
vivem sem veleidade. Não passam
de inocentes, rejeitados pela cidade.
São pagãos e, reafirmo, todos eles negros,
inda que sejam caucasianos,
tementes a Deus e saxões.
Andam por ai, prenhes de pecado, e
tomados de santidade,
as nossas pequenas crianças criminais,
que não puderam ir à escola,
e nem, da mãe, ter um colo.
Então, para salvar sua alma (e vida),
expiam suas dores sórdidas,
na carregança das tantas cruzes.
Nada vale uma Democracia,
que não protege crianças,
e não as faz alvo de políticas sociais.
Uma governança de fancaria, após outra,
nada mais, nada mais.
Ao contrário, os nossos políticos (porque cínicos)
os explodem (as crianças), com seus obuses fornidos,
numa guerra trágica, fratricida, surda e muda,
guerra não declarada, guerra de extermínio
a aqueles mais pobres, e sem direitos.
Uma guerra sem Geneve Convention,
sem o glamour de um Tony Blair
ou a liderança de um Bush, sem Guevara e sem Patrick Lumumba,
sem Ho Chi Min, sequer um Glauber Rocha, ou um Maiakovski,
que lhe possa, num épico, enfatizar.
Só resta, às crianças, expiar suas dores de escória,
mesmo incapazes de salvar alguém, pelo exemplo,
com a constante visão de suas vísceras à mostra.

quarta-feira, novembro 22, 2006

A (RE) UNIÃO DO CEU COM O MAR

Andava, eu, solitário, um poeta sem vantagem,
pelo calçadão do Recreio, no domingo, um passeio,
deambulando o pensamento, respirando a paisagem.

O sol intenso desta primavera, que, após dias, voltava d’outras plagas frias,
à canícula já formava, fazendo empacar meu não-ofensivo passatempo,
para olhar e pensar no mar.Não, o pensar como um onírico território,
para qualquer poético devaneio, mas, num prosaico mergulho, com o poder de abrandar.

Fui levando o corpo, sem alívio, lá para a beira da praia.
- Que é isto, seu louco? (me repreende a razão bifronte,
quando me atiro de pronto, na água infinitamente fria).
- Queres, no choque, romper um vaso ?
- Queres ter um AVC?
Mergulhei, pensando no que eu podia querer?
Talvez, quebrar o acaso, este que une o mar verde ao céu azul,
pois as cores (sempre imaginei) são inevitáveis irmãs.
E de novo afundei a cabeça, ainda quente do sol.

Súbito, quando emergi, um susto: É como se visse um vulto,
no longe, caindo, caindo, em vôo e vertical-mergulho.

Penso que podia ter tido uma visão de atavismo,
tanto que, míope, duvido desta vista que inda apuro,
e reage ao tonteio do mar.

Se o sol, que lá ia no alto, tinha seu jeito próprio de ofuscar a visão,
havia também o frescor, que fácil, poderia, no delírio do prazer e da fé,
iludir e comover, para que a mente humana, pudesse ver mais do que é.

Mas, eis que meu olhar parado, n’algum ponto de alem-mar,
fez-se infesto ao ceticismo cartesiano de minha mente, descrente,
e no mistério, neófito, pude ver a gaivota, artesã laboriosa,
mergulhar seguidas vezes para desfazer o meu mal-feito,
chuleando o céu rasgado, reatando-o com o mar,
e tendo para o pesponteio, toda a linha do horizonte.

sexta-feira, novembro 10, 2006

O VERDOR DO LAGO

No assombro da noite, a manhã desperta e o lago, prepondera
Como um Baikal verde de poderes, refletindo afazeres naturais.
E são tantos e variados os eventos do dia, no pleno sacrifício da terra.
As aves migratórias após viagem branda, fazem libações nos ninhais.

Há o grasnar de aves-gralhas, biguás buscando alevinos em tara,
Os pernaltas grous, todos ciscantes no entorno aos larvais.
As andorinhas enfrentam a rapina em defesa da cria, coisa rara.
Maritacas em estrepitoso bando, cruzam o lago. Alaridos matinais.

E ainda o verdor intenso das centenárias que ao lago abraçam.
Contrastando o teto de celeste anil, as folhas velhas e as tenras
Em uma trama-tessitura, pelos altos dos galhos, se entrelaçam.

Mas não me referisse as deambulantes formigas, nada eu diria
Posto que estas sejam tão presentes no lago, laboriosas amigas
Que sobem pelos meus pés, à beira da água, enquanto escrevo poesia.

NO RASTRO DA MARESIA

Que dizer de um tal momento apenas prenunciado
no rastro da maresia, num gemido prévio
anterior, em través na garganta?
Que dizer da vontade de flambar o melhor conhaque na tarde fria?
E do frio na barriga? Que dizer de um olhar fundo e do pecado original?
Que dizer quando no rádio uma canção, e um solo de bandoneon?
Desejo? O de vestir casimira azul
que, de tão antiga, convidaria-te a um cinema domingueiro.
Outro desejo? Apenas mergulhar no mar cinza metálico
de um balneário no Egito, ou, quiçá
voar sem destino nas asas do vento.

segunda-feira, novembro 06, 2006

SONETO DO LAGO ESPECTRAL

Extenuado, buscava o descanso, a paz e a meditação
Para obrar poemas em bucólico remanso, bem ermo da cidade.
Fui parar em terra (depois o soube) de ancestral assombração
Frente a qual, pouca monta faria a urbana veleidade.

Já que ali me encontrava, melhor seria a prontidão
Deste meu torto espírito, nada afeito à deidade.
Ter em minha mente, toda a luz, mero regalo vão.
O ceticismo é sem valia, mais que a crente simplicidade.

Chegando à Casa do Lago, miríades de insetos flamejantes
Reluziam em nevoa, imersos, como em velhos pântanos da Escócia.
Vi entes fantasmáticos, tambourilos secos ouvi, e mais, silvos ciciantes.

A noite já ia densa e os sapos alardeavam os encontros espectrais,
Tanto que furtou-se-me o sono pois em vigília, no frigir desta algazarra
O medo tão só me alentava o estar vivo na aurora, ademais.